Beatriz Malcher é professora. Se doutorou em Teoria Literária(2020) no PPGCL-UFRJ. É autora peça Onde está Liz dos Santos?, da dramaturgia Carro Alegórico (Hecatombe, 2021) e das plaquetes de poesia lembranças dos acidentes que não sofri (edição própria, 2022) e O Álbum dos Carros (Ed. Primata, 2023).
Quando será que o Fernando Gabeira finalmente vem me visitar?
encontrei algumas coisas
na entrada do wikipedia sobre
o parque estadual do jalapão
uma região árida pontilhada de oásis
situada a leste do estado do tocantins.
descobri, por exemplo, ser
quase impossível passar
uma hora que seja no jalapão
sem ver um animal. a sua fauna
diversa é composta por antas veados
campeiros capivaras tamanduás
bandeiras raposas lobos guarás
gambás macacos jacarés onças
pardas pintadas cobras aves e insetos de
diferentes tipos.
você sempre teve medo de mosquito
alergia de gato fobia só de ver
no discovery a imagem de uma
jiboia. não deixo de achar corajoso
que agora você esteja aí correndo
os perigos que não queria
correr do meu lado. talvez por isso também
que eu não tenha mais notícias tuas. talvez
você esteja se ocupando em decorar
a cor de diferentes passarinhos. talvez você
tenha se distraído com a fofura de um roedor.
talvez você tenha virado onça.
a região é considerada a principal atração turística
do tocantins, além de ser palco de espetáculos midiáticos.
em 2008, por exemplo, foi gravado aí um
reality show chamado survivor. já em 2016
o gabeira usou a região para gravar um curto
documentário para a globonews
sobre aquilo que chama de coração
do brasil. no ano seguinte o jalapão
serviu de cenário para uma novela
o outro lado
do paraíso.
você sempre teve medo de se expor
alergia a aparecer fobia só de ver
a imagem de alguém passando vergonha em
rede nacional. não deixaria de achar
graça se de repente você virasse
repórter personagem secundário de novela
subcelebridade. talvez por isso
também eu não tenha mais
notícias tuas. talvez você esteja
se ocupando com a fama.
apesar disso, segundo a wikipedia,
é possível passar dias meses e, com
esforço necessário, uma vida inteira
no jalapão sem ver uma única
pessoa. afinal a densidade
populacional da região é
de 0,8 habitantes por km
quadrado.
você sempre teve medo de gente
alergia a gente fobia só de ver
no facebook a cara de alguém.
não deixo de achar covarde
que agora você esteja aí
vivendo o isolamento que eu não
queria viver do teu lado. talvez
por isso também eu não tenha mais
notícias tuas. talvez você
esteja se ocupando
em desaparecer.
infelizmente não tem entrada na wikipedia
sobre o apartamento 205, em que moro.
mas eu posso falar com propriedade,
por exemplo, que é quase impossível
passar uma hora que seja aqui
sem ver um animal. a sua fauna diversa
é composta por mim pela baleia
por aranhas abelhas cigarras
esperanças e insetos de diferentes tipos.
as vezes nem parece que eu moro
na segunda maior cidade do brasil. as vezes
sinto que estou correndo perigo. as vezes
parece que a qualquer momento
eu viro bicho.
a internet do 205 tem 600 mega
de velocidade e dá pra ter assinatura
do mubi, netflix, hbo max. o apartamento é equipado
com uma coleção de dvds livros alguns discos. e um habitante
daqui pode gastar grande parte dos dias trocando
mensagens no whatsapp ou postando imagens no instagram.
as vezes eu posto só pra que alguém me curta.
as vezes ligo a televisão só pra ouvir a voz de
outra pessoa. as vezes eu mando áudios
longos só pra ouvir a minha própria voz.
as vezes eu sinto como se
estivesse do outro lado
do inferno.
no 205 é possível passar dias meses e,
com o azar necessário, uma vida inteira
sem ver uma única pessoa, ainda
que nesse edifício tenham dez andares, seis
apartamentos por andar e que a densidade
populacional da cidade seja de 5.556
habitantes por quilômetro
quadrado.
as vezes parece que nunca mais
vai ter gente por aqui. as vezes parece que
eu estou ocupada em desaparecer. as vezes
parece que o rio de janeiro é
uma região árida pontilhada
de oásis situada a leste
de lugar nenhum.
arrisco pensar que o fernando gabeira
diria que o 205 é o coração
de um país
estrangeiro
Celebrate good times, come on!
nesse armário sob a pia moram meus fantasmas
eles colorem de azul um jogo de louça pra oito pessoas
onde bebem chá comem tortas falam muito brigam se abraçam
fingem que foram felizes
de tempos em tempos na minha cozinha festejam meus fantasmas
celebram qualquer coisa me deixam sempre de fora
mas me assombram
riem alto da minha solidão
faço que acho graça
não acho digo gosto assim
não gosto e numa tarde de desgosto
alguém de longe me disse pra criar um método de expurgo
uma espécie de manual organizado
que servisse para transformar o assombro
em confiança no futuro
e assim fiz:
ㅤI) Manual de expurgo
ㅤ1) abrir a porta do armário
ㅤ2) deixar os fantasmas saírem pra tomar ar
ㅤ3) tirar os livros da mesa de jantar
ㅤ4) atear fogo em todos eles
ㅤ5) deixar as palavras queimarem
ㅤ6) na mesa vazia colocar uma tolha branca bordada por alguém de outro século
ㅤ7) pegar pratos travessas talheres e coloca-los à mesa
ㅤ8) chamar amigos para ocupar cada uma das cadeiras
ㅤ9) quando eles entrarem pela porta, deixar os fantasmas saírem
ㅤ10) não abrir novamente a porta
ㅤ11) formar nova tradição com os três quatro sete amigos que estão em volta da mesa
ㅤ12) beber chá
ㅤ13) comer tortas
ㅤ14) falar muito
ㅤ15) brigar
ㅤ16) abraçar
ㅤ17) jurar que somos felizes
ㅤ18) colorir as louças de glacê goiabada memória doce de leite
ㅤ19) de fato sermos felizes
mas a felicidade é pedir muito
e doce de leite engorda.
Tentei de novo:
ㅤII) Manual de autodestruição completa
ㅤ1) entrar no armário
ㅤ2) fechar a porta
ㅤ3) esperar sufocar
ㅤ4) virar fantasma
ㅤ5) esquecer de tudo
ㅤ6) dançar
mas o esquecimento também é uma forma de lembrar
pelo vazio
e corpo morto não dança.
Entendi que era urgente uma heresia:
ㅤIII) Manual definitivo de devoração
ㅤ1) pegar do armário um único prato da louça cara
ㅤ2) vesti-lo com restos da comida gelada mal temperada da noite de ontem
ㅤ3) me sentar sozinha no chão imundo
ㅤ4) comer com as mãos
ㅤ5) lambuzar a cara
ㅤ6) lamber o fundo do prato a ponta dos dedos o chão inteiro
ㅤ7) fazer disso uma maneira de devorar com ódio os meus mortos
ㅤ8) aprender que pra confiar no futuro ou pra amar coisa nova é preciso perder o medo de
arrancar pedaços
Fotografia: Rua São José; dos números 78 ao 98 – Augusto Malta (Acervo Instituto Moreira Salles).